Foram várias as tentativas do governo Bolsonaro de liberar os objetos de luxo dados de presente pela Arábia Saudita. A última aconteceu em dezembro de 2022, pouco mais de um ano depois da apreensão pela Receita. Vídeo mostra diálogo em que emissário do Planalto tenta resgatar joias milionárias
Foram várias as tentativas do governo Bolsonaro de liberar os objetos de luxo dados de presente pela Arábia Saudita. A última aconteceu em dezembro de 2022, pouco mais de um ano depois da apreensão pela Receita. A dois dias do fim do mandato de Jair Bolsonaro, um emissário da Presidência da República esteve no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
O vídeo, obtido com exclusividade pelos repórteres Andréia Sadi e Arthur Guimarães, é de 29 de dezembro do ano passado, a dois dias do fim do mandato de Jair Bolsonaro.
O primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva foi a São Paulo, em caráter urgente, a mando do tenente-coronel do Exército, Mauro Cid, na época “chefe da ajudância de ordens” de Bolsonaro, para “atender demandas do senhor presidente da república”.
Joias para Michelle Bolsonaro: veja quem são os envolvidos no caso dos presentes milionários
Em operação conjunta com gabinete de Bolsonaro, chefe da Receita mandou liberar joias confiscadas
Imagens mostram tentativa de ministro do governo Bolsonaro de entrar no Brasil sem declarar joias
Jairo entra na sala da Alfândega do aeroporto em Guarulhos pouco depois das 18h, permanece no local por 12 minutos. Todo o diálogo foi gravado, o que é praxe nesses atendimentos. Quem atende o militar é o auditor da Receita Marco Antônio Lopes Santanna.
Jairo mostra a ele um documento no celular. É o ofício assinado por Mauro Cid para o então secretário da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, indicando o nome de Jairo para pegar as joias milionárias.
Jairo: Em cima da hora, correria!
Marco: Então, a gente não tá… Assim, não sei do que se trata. Deixa eu dar uma olhada.
Jairo: Achei que tinham entrado em contato.
Marco: Ao senhor Júlio César…
Jairo: Tem esse material dele que tá aqui.
Marco: (inaudível) Presidente da república… Dos bens que foram ofertados…
Nesse momento, o auditor fala sobre o termo de retenção, TR, de outubro de 2021, quando a Receita apreendeu as joias.
“Ah, menciona aqui um TR. Joias (inaudível), miniatura de um cavalo… Assim, aqui também menciona um TR que deve ter sido, é de outubro, é de outubro de 21? É isso, né? Pelo que tá aqui… Então, não tenho conhecimento disso, assim, pra… De liberação, de documento da incorporação…”
O telefone de Jairo toca . Quem liga é o coronel Mauro Cid, mas o auditor da Receita se recusa a falar com ele.
Jairo: Coronel, eu tô aqui na alfândega aqui já. Tô falando com o supervisor deles aqui. O senhor prefere falar com ele? Falou que não tá ciente do que se trata. Posso passar aqui pra ele?
Marco: Não, não posso falar no celular. Então, é que esse ofício tá direcionado ao secretário, né? Ao Júlio. Então, assim, não tem nenhuma, não tem assim… Eu não tenho acesso… Não, não tenho conhecimento, não sei onde estaria. Como é uma joia, talvez esteja num cofre, mas que eu também não tenho acesso. Não tô sabendo dessa liberação. E outra coisa, como é uma incorporação, teria que ter o ADM também, que é um ato de destinação de mercadoria. Só esse ofício, o ofício não tem… Não tem nem como ajudar em nada.
Por várias vezes, o auditor afirma que Jairo não apresentou a documentação necessária para liberar as joias.
“Não tenho como ajudar nesse sentido… Essa liberação pra mim aqui. Não tenho conhecimento também dessa liberação. Não sei onde estaria. Não tem como ajudar nisso aí não. Sem esse documento não tem incorporação, não tem como fazer, como liberar”, explica.
Jairo conversa com os auditores sobre como está a situação em Brasília na véspera da posse de Lula, dali a três dias, e diz que não pode deixar nada para o próximo governo.
“Tudo correndo normal. Assim, lá fora o pessoal gritando e a gente fazendo o que tem que fazer, passagem normal. Tanto que isso aqui faz parte da passagem, não pode ter nada do antigo para o próximo. Tem que tirar tudo, tem que levar, não pode. É burocrático, é burocracia”, diz.
Em seguida, o militar recebe uma segunda ligação de Mauro Cid, que continua tentando resolver a situação. Minutos depois, o então secretário da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, telefona e conversa com Jairo. E, mais uma vez, o auditor diz que não pode falar no celular.
Jairo: Tá aqui, mas ele não vai poder atender. É o procedimento. É o secretário da receita.
Marco: Não falo, não falo no telefone. Não posso falar no celular.
Jairo: Ele falou que não pode. Você tem como ligar pra ele? Ele pode ligar pra você? No seu celular?
Marco: Não vou falar no celular. A história é a seguinte, a questão é a seguinte: independente de ter, de onde esteja, tem que ter o ato de administração da mercadoria, porque é uma incorporação. Não tendo, não tem como liberar. Nem que eu pudesse, não tem como liberar, não tô sabendo.
Os vídeos fazem parte da investigação interna da Receita Federal e também serão analisados pela Polícia Federal e Ministério Público Federal.
A TV Globo apurou que os investigadores consideram estranho a pressa do enviado da Presidência da República para recuperar as joias de diamante confiscadas quando faltavam apenas dois dias para o fim do mandato de Jair Bolsonaro. Eles explicam que, ao encaminhar as joias para o acervo público do governo, a regularização poderia ser feita este ano, não haveria motivo para pressa nesse caso.
Os investigadores também consideram que a atuação do então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Vieira Gomes, foge das normas e padrões do órgão.
A defesa do coronel Mauro Cid não quis se manifestar.
O assessor de Bento Albuquerque disse que o ex-ministro tomou as medidas cabíveis em relação aos presentes.
O Jornal Nacional não teve resposta de Marcos André dos Santos Soeiro e de Jairo Moreira da Silva.
Michelle Bolsonaro afirmou, em rede social, que não tinha conhecimento sobre as joias.
A comitiva liderada pelo então ministro Bento Albuquerque entrou no Brasil com uma outra caixa com presentes do governo saudita. Ela continha itens de luxo masculinos, como relógio e abotoaduras, e não foi declarada à Receita Federal, que investiga o caso.
Documentos oficiais mostram que o então presidente Jair Bolsonaro recebeu, pessoalmente, os itens de luxo no Palácio da Alvorada, em novembro do ano passado, e levou o relógio na mudança, ao deixar o governo.
Polêmica das joias: recibo comprova que outro pacote com presentes do governo saudita foi entregue ao Planalto em novembro
Ao jornal “O Globo”, o filho do ex-presidente Flávio Bolsonaro, afirmou que não há nada de mal explicado no fato de a caixa com itens de luxo masculinos ter sido incorporada no acervo pessoal do pai. Ele disse ainda que, na opinião dele, a caixa é personalíssima, independentemente do valor; que o Tribunal de Contas da União tem esse entendimento agora; que a Comissão de Ética disse que não havia problema; e que não tem nenhum dolo, maldade ou ato de corrupção da parte de Jair Bolsonaro. Flávio Bolsonaro afirmou que não sabe se conjunto será devolvido ao patrimônio da União e que o TCU apenas recomenda a devolução.
O entendimento do Tribunal de Contas da União sobre presentes a chefes de estado é, na verdade, de 2016. Na ocasião, o TCU determinou que só são personalíssimos itens como medalhas, bebidas, perfumes, camisas, e que pedras preciosas dadas a chefes de estado são patrimônios da União, não pessoais.