Chlisman Toniazzo foi expulso de casa ao assumir homossexualidade, tornou-se pastor e fundou uma igreja. Keila Guedes passou a estudar a bíblia e diz que, ao entender contexto de passagens, melhorou relação com espiritualidade. Fiéis em culto da “Arena Church”, igreja inclusiva localizada na cidade de Taguatinga, no Distrito Federal
Divulgação
“Você já cresce se reprimindo e se condenando, tentando entender por que você é assim e por que não consegue deixar de ser”.
O desabafo é de Chlisman Toniazzo, de 31 anos. Ele conta que, desde jovem, era assíduo nas atividades da igreja e que tentou, por diversas vezes, lutar contra a própria sexualidade para permanecer no espaço sem ser julgado.
“Ou era uma doença, ou era algo diabólico”, lembra ao se referir à forma como era vista a homossexualidade no templo cristão. Depois de anos escondendo a própria orientação sexual, Chlisman decidiu estudar teologia, tornou-se pastor e fundou uma igreja inclusiva, com sede em Brasília onde “todos são bem-vindos”.
“Comecei a pregar com base naquilo que diz Atos 10:34 – Deus não faz acepção de pessoas”, diz o pastor.
Para Keila Guedes, de 46 anos, também foi difícil crescer em um lar cristão e conservador. “Eu sempre senti muito medo de Deus”, diz a advogada.
“Desde a infância, fui apresentada àquele Deus rígido que castigava e fui ensinada que a homossexualidade era o pior dos pecados. Esse medo fez com que eu permanecesse dentro do ‘armário’ até os 30 anos de idade”, conta.
Com base na própria vivência, Keila escreveu o livro “Pessoas LGBTQIAP+ e o direito a Deus”. Na obra, ela conta como começou a estudar a chamada teologia inclusiva (saiba mais abaixo).
“Ao mesmo tempo em que eu me senti enganada por tantos anos, presa em uma mentira criada, eu senti uma liberdade indescritível e o amor do verdadeiro Deus da Bíblia. O amor do Deus que sempre me conheceu e sempre soube quem eu era”, diz Keila.
Teologia inclusiva é uma forma de estudar a Bíblia com respeito à diversidade e promoção da inclusão social. É o que explica o professor e pesquisador Tony Gigliotti, do Núcleo de Estudos da Diversidade Sexual e de Gênero (NEDIG), da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, diversas passagens bíblicas foram tiradas de contexto para excluir grupos de minoria.
“Os textos bíblicos usados pelos conservadores para condenar essas pessoas são chamados, pela teologia inclusiva, ‘de textos de terror'”, diz Gigliotti.
“Essas interpretações equivocadas são fruto do patriarcalismo e do machismo estrutural, que criam hierarquias duras entre homens e mulheres e acabam por inviabilizar relações homoafetivas, que se propõem a ser mais horizontais, por ser o amor entre pessoas com corpos iguais ou mais parecidos”, diz o pesquisador.
LEIA TAMBÉM:
PRIMEIRAS DEPUTADAS TRANS: Congressistas não querem se limitar a pautas identitárias e miram comissões da Casa
HORÓSCOPO, RPG, HOMOSSEXUALIDADE, RANCOR: ‘lista de pecados’ de retiro de igreja viraliza
‘Acolher sem distinção’
Igreja inclusiva ‘Arena Church’, em Brasília, tem cerca de 250 fiéis
Chlisman Toniazzo, ao ter sua sexualidade descoberta pelo pastor da igreja que frequentava quando jovem, foi expulso de casa. O processo doloroso o levou a um quadro depressivo profundo.
Sozinho, ele conta que se viu “sem laços fraternos” e que sua espiritualidade também se enfraqueceu. Mas foi a partir da dor que Chlisman encontrou forças para viver o que ele chama de sua vocação: levar a palavra da Bíblia para outras pessoas que também se sentiram como ele.
Foi assim que ele começou a estudar hebraico e grego para entender os textos originais e suas interpretações e fundou a “Arena Church”. Atualmente, a igreja conta com mais de 250 fiéis em Brasília.
O objetivo, diz o pastor, não é fazer “ativismo”, mas sim acolher todas as pessoas, sem distinção.
“Meu propósito de vida é pregar para as pessoas que achavam que iam para o inferno, que Deus não as amava por conta de quem elas são. E dizer que é justamente o contrário: Deus é amor, e é amor incondicional”, diz o pastor.
Desde a criação, em 2018, a Arena Church recebeu, além de pessoas LGBTQIA+, famílias inteiras, casais heterossexuais, jovens, idosos, e pais e mães que decidiram abraçar a diversidade dos filhos (veja fotos acima).
Teologia protestante x teologia inclusiva
Keila Guedes, 46 anos, segurando o livro “Pessoas LGBTQIAP+ e o direito a Deus”, de sua autoria, em imagem de arquivo
Arquivo pessoal/Reprodução
No livro “Pessoas LGBTQIAP+ e o direito a Deus”, depois de contar sua experiência enquanto mulher homossexual de família evangélica e explicar a releitura de diferentes passagens bíblicas, Keila Guedes aborda o contexto do surgimento da teologia inclusiva.
“Se analisarmos a história, veremos que do mesmo modo que os reformistas protestantes buscavam corrigir os erros da Igreja Católica da Idade Média, os teólogos inclusivos têm se debruçado sobre o contexto linguístico, histórico e social da época das escrituras, para demonstrar equívocos ensinados há séculos acerca do entendimento bíblico em relação às pessoas LGBTQIAP+”, diz a autora.
No Brasil, os primeiros grupos de cristãos inclusivos surgiram na década de 1990, mas as igrejas inclusivas só começaram a tomar forma a partir dos anos 2000, explica Keila. Seu livro será lançado em Brasília no dia 1º de abril e, em São Paulo, no dia 20 de abril.
“Pergunto-me quanto tempo levará até que os católicos e evangélicos percebam que estão ensinando errado quando insistem em dizer que não temos parte no Reino de Deus. E veja que o Reino é de Deus”, pontua Keila.
Mais que uma letra: entenda o que significa a sigla LGBTQIA+
Leia outras notícias da região no g1 DF.